Quadros de Lucebert
MEU POEMA
sou o fantasma holofote
instalado em nicho escuro
- 'aqui há gato' -
sussurra a jóia surripiada
ofuscada por mim ao voltar da festa
sou um espantalho sou olhado
no ovo recheado da minha dor
e a ave que deixa o filhote
espatifar-se no chão (é a sua espécie)
nasce com olhos meigos
sou o grande caos após o incêndio
sou o mobiliário gotejante
que ainda fumega e sou o torcer de mãos
o beber aguardente na noite húmida
sou a constipação após o grande incêndio
sou o tirano pálido na manhã alva
o seu relógio vai atrasado
mas o coração antecipa a sentença de morte
e uivo ao cheiro de carne humana
embora não goze tal delícia há anos
sou a rapariga que na minha memória
encontro na colina florida
converso com ela tão meigamente
como a brisa estival fala ao convalescente
ela é muito pálida e tem rosto de memória
sou a voz que não dá voz
ao que já tem voz
mas que sobre o silêncio angustioso
coloca a imagem miraculosa de uma palavra
e só depois alheio a todo o medo
se sabe o que eu quis dizer com tudo isto
o Poema é amuleto
LUCEBERT (pseudónimo de L. J. Swaanswijk, Holanda, 1924-1994) é a incarnação do espírito cinquentista: exuberante, agressivo, rebelde. Tanto na sua obra plástica, como na de poeta, é manifesto o seu desprezo por dogmas e convenções artísticas e sociais. Busca a inspiração na arte primitiva (o tema do negro), na ingenuidade (tema da criança), na espontaneidade, na atonalidade, do que resulta uma arte sumamente revolucionária, livre, mas ao mesmo tempo estruturada pelo intuito de restituir ao homem as forças elementares, perdidas ou recalcadas na civilização ocidental.
Pelo seu olhar desprevenido, que considera as coisas sem situá-las em qualquer sistema, pela absoluta liberdade de associações de imagens, pelo emprego de metáforas, símbolos e mitos, pela formação de neologismos e pela desintegração da sintaxe, Lucebert é, à primeira leitura, um dos mais difíceis poetas holandeses modernos.
(Tradução do Poema: August Willemsen e Egito Gonçalves)